ROSA COUTINHO

29 de Novembro de 1974 a 28 de Janeiro de 1975



A situação do funcionalismo e as suas reivindicações exorbitantes foram descritas pelo presidente da Junta Governativa e por membros do governo provisório aos jornalistas convocados para uma conferência de imprensa.
Nos diferendos que opunham patrões e empregados ambas as partes não resistiam ao seu pedaço de batota. No caso concreto do funcionalismo, a entidade patronal alegou que os aumentos pedidos pelos funcionários implicavam uma "facada" no orçamento de Angola, incomportável portanto para os cofres públicos, concluindo-se exactamente como o fizeram as poucas empresas privadas ante reivindicações sindicalistas ou selváticas. Argumentaram os governantes que o produto nacional bruto rende pouco por ano. Uma miséria! Que feitas as contas os funcionários mais humildes desejavam ganhar num mês o que os seus irmãos das zonas rurais (e que eram a maioria esmagadora da população) ganhavam num ano. Uma imoralidade bastante imoral!, posta nos termos em que foi.
O governo enfrentava no momento o mesmo problema que afectou as empresas privadas de economia bem dimensionada. Comportava-se do mesmo modo. Simplesmente dispunha de meios de intervenção que às empresas privadas estavam vedados. Se o funcionário exorbitava podia exonerá-lo através de competente processo disciplinar. Se não exorbitava o suficiente para justificar o consumo de papel azul de 25 linhas podia-se despedi-lo sem justa causa, como se fez com o jornalista João Aguiar. As empresas privadas não podiam enveredar poer esses meios por causa dos sindicatos, dos intersindicatos e dos directórios.
Outro ponto digno de registo foi o conhecimento que finalmente tinha chegado ao governo a simplicidade com que se faziam e exigiam saneamentos. Enquanto foi para os outros pactuou-se que foi um luxo, quando começou a bater pela porta doia até às lágrimas. Era a vida, e o que acontecia a quem se esfalfava a ensinar a democracia aos outros e fascismava em casa.


Na estrada de Catete mais de quatrocentas viaturas pesadas imobilizadas. Os abastecimentos para a capital retidos, enquanto a cidade batia todas as lojas em busca de géneros alimentícios para se resguardar da ameaça de fome que pairava. A única reivindicação dos "grevistas": medidas de segurança nas estradas que percorrem, no dia a dia da profissão. Vidros estilhaçados à pedrada; marcas visíveis de balas nos tara-brisas. Reflexos da agitação que alastra, do banditismo que se expande e da falta de repressão das autoridades. Suficientemente solidários para conseguir a paralização completa de trabalho, em todo o território, os camionistas acabaram por receber do Secretário de Estado engº. Fernando Falcão, garantias de reforço de patrulhameto das estradas.






Funcionários da Câmara Municipal de Luanda decidiram suspender temporariamente as suas funções a fim de que as solicitaç~pes que os trabalhadores fizeram sejam apressadas na sua solução.
Como base para a suspensão do trabalho na manhã do dia 12 de Novenbro de 1974, eis os motivos apresentados:
  • - Suspensão imediata dos doutores Licínio J. Agostinho e Castelo-Branco-Mota, e dos funcionários João Rodrigues da Cova e Joaquim Casal Ribeiro.
  • - Que seja autorizado e passe a entrar na ordem do mês o subsídio de insanidade que se prometera pagar no primeiro dia desta semana.
  • - Pagamento de quatro meses de diferenças de salário, cujo prazo de cumprimento terminava dia 15. Apesar de ainda faltarem dois dias os funcionários concluiram que não havia tempo para que isso fosse cumprido a horas.
No fundo mais uma greve. Uma a juntar ao panorama desolador, caótico anárquico que se vive em Angola, onde a palavra de ordem é paralização de serviços, por qualquer motivo. O que significa paralização e golpes na economia.

Realizou-se a conferência de Imprensa do MPLA. Lúcio Lara começou naturalmente por salientar a calorosa recepção da aderência das massas populares ao Movimento. Lamentou os acontecimentos trágicos que têm conturbado os últimos dias, chamando a atenção pata factos que de algum modo se devem considerar significativos. Assim, lembroy que o surto de violência estalou dias antes da chegada da delegação do MPLA a Luanda; estranhou que tivessem soltado presos, delinquentes comuns; que estão a perpretar roubos, saques e outros actos de violência os quais, naturalmente o MPLA repudia veementemente. A reacção, disse, não desarmou. Sobre o atentado perpretado contra elementos que se encontravam na tribuna, no decorrer do comício no Bairro Popular, Lúcio Lara foi bastante claro e conciso: patiu dum veículo da Polícia!
No período de perguntas e respostas não adiantou muito. Lúcio Lara confirmou que a segunda fase do processo de descolonização, iniciada em Cangumbe irá prosseguir. As conversações com dirigentes dos outros Movimentos é possível, sem que isso signifique a obrigatoriedade de se vir a constituir uma frente comum. Na opinião expressa do chefe da delegação do MPLA, o mais importante é definir os pontos fundamentais das exigências que devem aoresentar-se ao governo de Lisboa para terminar com o processo de descolonização. Sobre as facções no seio do Movimento, Lúcio Lara repetiu que facções nascem e morrem no seio de todos os movimentos. A sua influência residirá sempre no apoio que venham a obter do povo. A sua real influência não pode aferir-se, portanto dos auxílios e apoios externos. Concretamente a Daniel Chipenda, o chefe da delegação afirmou: "...ele excluiu-se do MPLA!..." Ainda referindo-se ao problema das dissidências internas, Lùcio Lara lembrou que o Movimento perdera muito tempo a procurar chamar à razão os dissidentes. Uns regressaram, outros não.


Finalmente o MPLA parece ter acordado e passado a actuar. Assim se mostraram bem úteis as críticas feitas a impassibilidade com que, durante demasiado tempo, permitiu que em seu nome centenas de desordeiros cometessem toda a espécie de desacatos por Angola fora e especialmente em Luanda.
Capturou e apresentou publicamente sete marginais aos seus simpatizantes antes de os entregar às autoridades portuguesas, e denunciou especificamente grupos armados que cometem desacoatos, com este gesto, o MPLA tenta conquistar junto do povo o prestígio que o seu programa quer apresentar, dizendo não e que é preciso agir, utilizando a força para se afirmar pela ordem e pela paz.


É grande, a cidade que flutua. Tinha no seu bojo a economia desta terra. Implacável limitava-se a assistir à derrocada da cidade-cimento, da cidade-adobe, da cidade-mosseque. Sem pressas nem ódios. Esperava, apenas...
Um desses dias deixaria de esperar. Virar-lhe-ia apenas as costas. E nessa altura Angola talvez deixasse de provocar invejas. Passaria a ser, apenas, uma terra que podia ser rica e próspera se tivesse querido. Luanda não se interessa. Parece rir-se de ver na sua frente tantos barcos que a admiram e lhe aceitam as birras de menina rica.


Por motivos vários, Luanda viu-se a braços, num curto espaço de tempo, com uma série de greves que afectaram gravemente a economia de toda a Angola. A capital debateu-se com carências de toda a ordem. Parado o porto, de navios ao largo, sentiu-se logo o primeiro embate. A greve dos camionistas, tempos depois, alarmou as donas de casa e não só, que deram de caras com os mercados fechados, e sofreram a falta de alimentos. Quase na mesma altura uma falta de pão, refrigerantes e cervejas. A Textang parava 25 dias. Os Serviços de Saúde sofriam greve de meio dia, para dar origem aos boatos mais desencontrados, desde a história da enfermaria sem enfermeiras e com doentes a sofrerem imenso, à falta de alimentação - solidarização do cozinheiro à greve - para os internados. A Câmara pedia imediato afastamento de quatro pessoas, e para reforçar parava durante uma manhã. O Instituto de Café aderia, (parcialmente forçado) os estivadores coagiam todo o pessoal dos serviços à paralização por outros motivos. A Cassequel, em greve durante dez dias acabou por subir o preço do açucar, devidamente autorizada, e resolvia o problema dos seus empregados, satisfazendo as suas reivindicações.
Era o caos, alegremente festejado com planfletos, comunicados, considerandos e bandeiras de movimentos emancipalistas. Era o ataque mais frontal à economia e consequentemente ao povo, mascarado de defesa pelos interesses do mesmo povo. Universitários maoístas orquestavam as paralizações de trabalho. Lideraram o povo com meia dúzia de palavras bonitas, sabe-se lá com que intenções. E tudo era de prever quando se sabe que, em Luanda como em quase todo o mundo ocidental, os estudantes universitários provinham da burguesia, eram filhos de gente com posses e raríssimos eram os casos em que a ideologia apregoada acompanhava a maneira de viver.
Foi uma orquestação perfeita. Os reivindicadores reividicavam, os patrões estudavam o assunto, os bares serviam bicas e sumos de laranja e as forças armadas observavam tudo ajuizadamente como se da normalidade se tratasse.



Em Luanda os três movimentos matavam-se uns aos outros e o clima de guerra que mantinham  estava a atingir o seu auge, quando quase por milagre resolveram reunir-sede 3 de Janeiro a 5 do mesmo mês, no Quénia, na cidade de Mombaça e sob os auspicios de Jombo Kenyata chegaram a uma plataforma de entendimento sobre a partilha de poder em Angola.


ACORDO DE ALVOR
DELEGAÇÃO PORTUGUESA
DELEGAÇÃO DE PORTUGAL

DELEGAÇÃO DA UNITA

DELEGAÇÃO DO MPLA

DELEGAÇÃO DA FNLA

TEXTO DO ACORDO
CAPITULO I

Da independência de Angola

ARTIGO 1.º

O Estado Português reconhece os movimentos de libertação, Frente Nacional de Libertação de Angola - F. N. L. A., Movimento Popular de Libertação de Angola - M. P. L. A., e União Nacional para a Independência Total de Angola - U. N. L T. A., como os únicos e legítimos representantes do povo angolano.

ARTIGO 2.º

O Estado Português reafirma, solenemente, o reconhecimento do direito do povo angolano à independência.

ARTIGO 3.º

Angola constitui uma entidade, una e indivisível, nos seus limites geográficos e políticos actuais e neste contexto, Cabinda é parte integrante e inalienável do território angolano.

ARTIGO 4.º

A independência e soberania plena de Angola serão solenemente proclamadas em 11 de Novembro de 1975, em Angola, pelo Presidente da República Portuguesa ou por representante seu, expressamente designado.

ARTIGO 5.º

O Poder passa a ser exercido, até à proclamação da independência, pelo alto-comissário e por um Governo de Transição, o qual tomará posse em 31 de Janeiro de 1975.


Ilícito qualquer acto de recurso à força

ARTIGO 6.º

O Estado Português e os três movimentos de libertação formalizam, pelo presente acordo, um cessar-fogo geral, já observado, de facto, pelas respectivas Forças Armadas em todo o território de Angola.
A partir desta data, será considerado ilícito qualquer acto de recurso à força, que não seja determinado pelas autoridades competentes com vista a impedir a violência interna ou a agressão externa.

ARTIGO 7.°

Após o cessar-fogo as Forças Armadas da F. N. L. A., do M. P. L. A. e da U. N. I. T. A. fixar-se-ão nas regiões e locais correspondentes à sua implantação actual, até que se efectivem as disposições actuais, previstas no capítulo IV do presente acordo.

ARTIGO 8.º

O Estado Português obriga-se a transferir progressivamente até ao termo do período transitório, para os órgãos de soberania angolana, todos os poderes que detém e exerce em Angola.

ARTIGO 9.º

Com a conclusão do presente acordo consideram-se amnistiados, para todos os efeitos, os actos patrióticos praticados no decurso da luta de libertação nacional de Angola, que fossem considerados puníveis pela legislação vigente à data em que tiveram lugar.

ARTIGO 10.º

O Estado Independente de Angola exercerá a soberania, total e livremente, quer no plano interno quer no plano internacional.

CAPITULO II

Do alto-comissário

ARTIGO 11.º

O Presidente da República e o Governo Português são, durante o período transitório, representados em Angola pelo alto-comissário, a quem cumpre defender os interesses da República Portuguesa.

ARTIGO 12.º

O alto-comissário em Angola é nomeado e exonerado pelo Presidente da República Portuguesa, perante quem toma posse e responde politicamente.

ARTIGO 13.º

Compete ao alto-comissário:

a) representar o Presidente da República Portuguesa, assegurando e garantindo, de pleno acordo com o Governo de Transição, o cumprimento da lei;

b) salvaguardar e garantir a integridade do território angolano em estreita cooperação com o Governo de Transição;

c) assegurar o cumprimento do presente acordo e dos que venham a ser celebrados entre os movimentos de libertação e o Estado Português;

d) garantir e dinamizar o processo de descolonização de Angola;


e) ratificar todos os actos que interessem ou se refiram ao Estado Português;

f) assistir às sessões do Conselho de Ministros, quando o entender conveniente, podendo participar nos respectivos trabalhos, sem direito de voto;

g) assinar, promulgar e mandar publicar os decretos-leis e os decretos elaborados pelo Governo de Transição;

h) assegurar, em conjunto com o colégio presidencial, a direcção da Comissão Nacional de Defesa, e dirigir a política externa de Angola, durante o período transitório, coadjuvado pelo colégio presidencial.
CAPITULO III

Do Governo de Transição

ARTIGO 14.º

O Governo de Transição é presidido pelo Colégio Presidencial.

ARTIGO 15.º

O Colégio Presidencial é constituído por três membros, um de cada movimento de libertação, e tem por tarefa principal dirigir e coordenar o Governo de Transição.

ARTIGO 16.º

O Colégio Presidencial poderá, sempre que o deseje, consultar o alto-comissário sobre assuntos relacionados com a acção governativa.

ARTIGO 17.º

As deliberações do Governo de Transição são tomadas por maioria de dois terços, sob a presidência rotativa dos membros do Colégio Presidencial.

ARTIGO 18.°

O Governo de Transição é constituído pelos seguintes Ministérios: Interior, Informação, Trabalho e Segurança Social, Economia, Planeamento e Finanças, Justiça, Transportes e Comunicações, Saúde e Assuntos Sociais, Obras Públicas, Habitação e Urbanismo, Educação e Cultura, Agricultura, Recursos Naturais.

ARTIGO 19.º

São, desde já, criadas as seguintes Secretarias de Estado:

a) duas Secretarias de Estado no Ministério do Interior;
b) duas Secretarias de Estado no Ministério da Informação;
c) duas Secretarias de Estado no Ministério do Trabalho e Segurança Social;
d) três Secretarias de Estado no Ministério da Economia, designadas, respectivamente, por Secretaria de Estado do Comércio e Turismo, Secretaria de Estado da Indústria e Energia e Secretaria de Estado das Pescas.

ARTIGO 20.°

Os ministros do Governo de Transição são designados, em proporção igual, pela Frente Nacional de Libertação de Angola (F. N. L. A.), pelo Movimento Popular de Libertação de Angola (M. P. L. A.), pela União Nacional para a Independência Total de Angola
(U. N. I. T. A.) e pelo Presidente da República Portuguesa, e tomam posse perante o alto-comissário.

ARTIGO 21.º

Tendo em conta o carácter transitório do Governo, a distribuição dos Ministérios é feita do seguinte modo:

a) ao Presidente da República Portuguesa cabe designar os ministros da Economia, das Obras Públicas, Habitação e Urbanismo e dos Transportes e Comunicações;
b) à F. N. L. A. cabe designar os ministros do Interior, da Saúde e Assuntos Sociais e da Agricultura;
c) ao M. P. L. A. cabe designar os ministros da Informação, do Planeamento e Finanças e da Justiça;
d) à U. N. I. T. A. cabe designar os ministros do Trabalho e Segurança Social, da Educação e Cultura e dos Recursos Naturais.

ARTIGO 22.º

As Secretarias de Estado previstas no presente acordo são distribuídas pela forma seguinte:
a) à F. N. L. A. cabe designar um secretário de Estado para a Informação, um secretário de Estado para o Trabalho e Segurança Social e o secretário de Estado do Comércio e Turismo;
b) ao M. P. L. A. cabe designar um secretário de Estado para o Interior, um secretário de Estado para o Trabalho e Segurança Social e um secretário de Estado da Indústria e Energia;
c) à U. N. I. T. A. cabe designar um secretário de Estado para o Interior, um secretário de Estado para a Informação e o secretário de Estado das Pescas.

ARTIGO 23.°

O Governo de Transição poderá criar novos lugares de secretários e subsecretários de Estado, respeitando na sua distribuição a regra da heterogeneidade política.

Competência do Governo de Transição

ARTIGO 24.º

Compete ao Governo de Transição:
a) velar e cooperar pela boa condução do processo de descolonização até à independência total;
b) superintender no conjunto da administração pública assegurando o seu funcionamento, e promovendo o acesso dos cidadãos angolanos a postos de responsabilidade;
c) conduzir a política interna, preparar e assegurar a realização de eleições gerais para a Assembleia Constituinte de Angola;
e) exercer por decreto-lei a função legislativa e elaborar os decretos, regulamentos e instruções para a boa execução das leis;
f) garantir, em cooperação com o alto-comissário, a segurança das pessoas e bens;
g) proceder à reorganização judiciária de Angola;
h) definir a política económica, financeira e monetária, e criar as estruturas ao rápido desenvolvimento da economia de Angola;
i) garantir e salvaguardar os direitos e as liberdades individuais ou colectivas.

ARTIGO 25.º

O colégio presidencial e os ministros são solidariamente responsáveis pelos actos do Governo.

ARTIGO 26.º

O Governo de Transição não poderá ser demitido por iniciativa do alto-comissário, devendo qualquer alteração da sua constituição ser efectuada por acordo entre o alto-comissário e os movimentos de libertação.

ARTIGO 27.º

O alto-comissário e o colégio presidencial procurarão resolver em espírito de amizade e através de consultas recíprocas todas as dificuldades resultantes da acção governativa.

ARTIGO 28.º

É criada uma Comissão Nacional de Defesa com a seguinte composição: alto-comissário; colégio presidencial; Estado-Maior Unificado.

ARTIGO 29.°

A Comissão Nacional de Defesa deverá ser informada pelo alto-comissário sobre todos os assuntos relativos à defesa nacional, tanto no plano interno como no externo, com vista a:

a) definir e concretizar a política militar resultante do presente acordo;
b) assegurar e salvaguardar a integridade territorial de Angola;
c) garantir a paz, a segurança e a ordem pública;
d) velar pela segurança das pessoas e dos bens.

ARTIGO 30.º

As decisões da Comissão Nacional de Defesa são tomadas por maioria simples, tendo o alto-comissário, que preside, voto de qualidade.

ARTIGO 31.°

É criado um Estado-Maior Unificado que reunirá os comandantes dos três ramos das Forças Armadas portuguesas em Angola e três comandantes dos movimentos de libertação.
O Estado-Maior Unificado fica colocado sob a autoridade directa do alto-comissário.

ARTIGO 32.°

Forças Armadas dos três movimentos de libertação serão integradas em paridade com Forças Armadas Portuguesas nas forças militares mistas em contingentes assim distribuídos: oito mil combatentes da F. N. L. A.; oito mil combatentes do M. P. L. A., oito mil combatentes da U. N. I. T. A. e 24 mil militares das Forças Armadas Portuguesas.

ARTIGO 33.º

Cabe à Comissão Nacional de Defesa proceder à integração progressiva das Forças Armadas nas forças militares mistas, referidas no artigo anterior, devendo em princípio respeitar-se o calendário seguinte: de Fevereiro a Maio, inclusive, serão integrados por mês, quinhentos combatentes de cada um dos movimentos de libertação e mil e quinhentos militares portugueses. De Junho a Setembro, inclusive, serão integrados por mês, mil e quinhentos combatentes de cada um dos movimentos de libertação e quatro mil e quinhentos militares portugueses.

ARTIGO 34.º

Os efectivos das Forças Armadas Portuguesas que excederem o contingente referido no artigo 32.°, deverão ser evacuados de Angola até trinta de Abril de 1975.

ARTIGO 35.º

A evacuação do contingente das Forças Armadas Portuguesas integrado nas forças militares mistas deverá iniciar-se a partir de um de Outubro de 1975 e ficar concluída até vinte e nove de Fevereiro de 1976.

ARTIGO 36.º

A Comissão Nacional de Defesa deverá organizar forças mistas de Polícia encarregadas de manter a ordem pública.

ARTIGO 37.º

O Comando Unificado da Polícia, constituído por três membros, um de cada movimento de Libertação, é dirigido colegialmente e presidido segundo um sistema rotativo, ficando sob a autoridade e a supervisão da Comissão Nacional de Defesa.

CAPITULO V

Dos refugiados e das pessoas reagrupadas

ARTIGO 38.º

Logo após a instalação do Governo de Transição serão constituídas comissões partidárias mistas, designadas pelo alto-comissário e pelo Governo de Transição, encarregadas de planificar e preparar as estruturas, os meios e os processos para acolher os angolanos refugiados.
O Ministério da Saúde e Assuntos Sociais supervisionará a acção destas comissões.

ARTIGO 39.º

As pessoas concentradas nas «sanzalas da paz» poderão regressar aos seus lugares de origem.
AS comissões partidárias mistas deverão propor ao alto-comissário, ao Governo de Transição, medidas sociais, económicas e outras para assegurar às populações deslocadas o regresso à vida normal e a reintegração nas diferentes actividades de vida económica do país.

CAPITULO VI

Eleições em Outubro

ARTIGO 40.º

O Governo de Transição organizará eleições gerais para uma Assembleia Constituinte no prazo de nove meses a partir de trinta e um de Janeiro de 1975, data da sua instalação.

ARTIGO 41.º

As candidaturas à Assembleia Constituinte serão apresentadas exclusivamente pelos movimentos de libertação - P. N. L. A., M. P. L. A. e U. N. I. T. A. - únicos representantes legítimos do povo angolano.

ARTIGO 42.º

Será estabelecida, após a instalação do Governo de Transição, uma Comissão Central, constituída em partes iguais por membros dos movimentos de libertação, que elaborará o projecto da lei fundamental e preparará as eleições para a Assembleia Constituinte.

ARTIGO 43.º

Aprovada pelo Governo de Transição e promulgada pelo colégio presidencial a Lei Fundamental, a Comissão Central deverá:

a) elaborar um projecto de lei eleitoral;
b) organizar os cadernos eleitorais;
c) registar as listas dos candidatos à eleição da Assembleia Constituinte apresentadas pelos movimentos de libertação.

ARTIGO 44.°

A Lei Fundamental, que vigorará até à entrada em vigência da Constituição de Angola, não poderá contrariar os termos do presente acordo,

CAPITULO VII

Da nacionalidade angolana

ARTIGO 45.º

O Estado Português e os três movimentos de libertação, F. N. L. A., M. P. L. A. e U. N. I. T. A. comprometem-se a agir
concertadamente para eliminar todas as sequelas do colonialismo. A este propósito, a F. N. L. A., o M. P. L. A. e U. N. I. T. A. reafirmam a sua política de não discriminação segundo a qual a qualidade de angolano se define pelo nascimento em Angola ou pelo domicílio desde que os domiciliados em Angola se identifiquem com as aspirações da Nação Angolana através de uma opção consciente.

ARTIGO 46.°

A F, N. L. A., o M. P. L. A. e a U. N. I. T. A. assumem desde já o compromisso de considerar cidadãos angolanos todos os indivíduos nascidos em Angola, desde que não declarem, nos termos e prazos a definir, que desejam conservar a sua actual nacionalidade, ou optar por outra.

ARTIGO 47.º

Aos indivíduos não nascidos em Angola e radicados neste país, é garantida a faculdade de requererem a cidadania angolana, de acordo com as regras da nacionalidade angolana que forem estabelecidas na Lei Fundamental.

ARTIGO 48.º

Acordos especiais a estudar ao nível de uma comissão paritária mista, regularão as modalidades da concessão da cidadania angolana aos cidadãos portugueses domiciliados em Angola, e o estatuto de cidadãos portugueses residentes em Angola e dos cidadãos angolanos residentes em Portugal.

CAPITULO VIII

Dos assuntos de natureza financeira

ARTIGO 49.º

O Estado Português obriga-se a regularizar com o Estado de Angola a situação decorrente da existência de bens pertencentes a este Estado fora do território angolano, por forma a facilitar a transferência desses bens, ou do correspondente valor para o território e a posse de Angola.

ARTIGO 50.°

A F.N.L.A., o M.P.L. A. e a U.N.I.T.A, declaram-se dispostos a aceitar a responsabilidade decorrente dos compromissos financeiros assumidos pelo Estado Português em nome e em relação a Angola, desde que o tenham sido no efectivo interesse do povo angolano.

ARTIGO 51.°

Uma comissão especial paritária mista, constituída por peritos nomeados pelo Governo Provisório da República Portuguesa e pelo Governo de Transição do Estado de Angola, relacionará os bens referidos no Art. 49.° e os créditos referidos no Art. 50.°, procederá às avaliações que tiver por convenientes, e proporá àqueles Governos as soluções que tiver por justas.

ARTIGO 52.º

O Estado Português assume o compromisso de facilitar à comissão referida no artigo anterior todas as informações e elementos de que dispuser e de que a mesma comissão careça para formular juízos fundamentados e propor soluções equitativas dentro dos princípios da verdade, do respeito pelos legítimos direitos de cada parte e da mais leal cooperação.


Criação de um banco emissor

ARTIGO 53.º

O Estado Português assistirá o Estado angolano na criação e instalação de um banco central emissor. O Estado Português compromete-se a transferir para o Estado de Angola as atribuições, o activo e o passivo do departamento de Angola no Banco de Angola, em condições a acordar no âmbito da comissão mista para os assuntos financeiros. Esta comissão estudara igualmente todas as questões referentes ao departamento de Portugal do mesmo banco, propondo as soluções justas, na medida em que se refiram e interessem a Angola.

ARTIGO 54.º

A P. N. L. A., o M. P. L. A. e a U. N. I. T. A. comprometem-se a respeitar os bens e os interesses legítimos dos portugueses domiciliados em Angola.

CAPITULO IX

Da cooperação entre Angola e Portugal

ARTIGO 56.º

O Governo Português por um lado e os movimentos de libertação por outro acordam em estabelecer entre Portugal e Angola laços de cooperação construtiva e duradoura em todos os domínios, nomeadamente nos domínios cultural, técnico, científico, económico, comercial, monetário, financeiro e militar, numa base de independência, igualdade, liberdade, respeito mútuo e reciprocidade de interesses.

CAPITULO X

Das comissões mistas

ARTIGO 56.º

Serão criadas comissões mistas de natureza técnica e composição paritária nomeadas pelo alto-comissário de acordo com o colégio presidencial, que terão por tarefa estudar e propor soluções para os problemas decorrentes da descolonização e estabelecer as bases de uma cooperação activa entre Portugal e Angola, nomeadamente nos seguintes domínios:

a) cultural, técnico e científico;
b) económico e comercial;
c) monetário e financeiro;
d) militar;
e) da aquisição da nacionalidade angolana por cidadãos portugueses.

ARTIGO 57.º

As comissões referidas no artigo anterior conduzirão os trabalhos e negociações num clima de cooperação construtiva e de leal ajustamento. As conclusões a que chegarem deverão ser submetidas, no mais curto espaço de tempo, à consideração do alto-comissário e do colégio presidencial com vista à elaboração das disposições gerais.

CAPITULO XI

Desacordos entre Portugal e Angola

ARTIGO 58.°

Quaisquer questões que surjam na interpretação e na aplicação do presente acordo e que não possam ser solucionadas nos termos do Art. 27.°, serão resolvidas por via negociada entre o Governo Português e os movimentos de libertação.

ARTIGO 59.º

O Estado Português, a F.N.L.A., o M.P.L.A. e a U.N.I.T.A., fiéis ao ideário sociopolítico repetidamente afirmado pelos seus dirigentes, reafirmam o seu respeito pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas e na declaração universal dos Direitos do Homem bem como o seu activo repúdio por todas as formas de discriminação social, nomeadamente o «apartheid».

ARTIGO 60.°

O presente acordo entrará em vigor imediatamente após a homologação pelo Presidente da República Portuguesa. As delegações do Governo português, da F.N.L.A., do M.P.L.A. e da U.N.I.T.A. realçam o clima de perfeita cooperação e cordialidade em que decorreram as negociações e felicitam-se pela conclusão do presente acordo, que dará satisfação às justas aspirações do povo angolano e enche de orgulho o povo português, a partir de agora ligados por laços de funda amizade e propósitos de cooperação construtiva para bem de Angola, de Portugal, da África e do Mundo.
Assinado em Alvor, Algarve, aos 15 dias do mês de Janeiro de 1975 em quatro exemplares em língua portuguesa.



E pronto, cá vamos para a independência, inexoravelmente, a sessenta minutos por hora. Agora sabia-se exactamente como iamos. Representantes legítimos do povo angolano, eram três. Os três Movimentos de Libertação. Angolanos, pensava-se, seriam todos os nascidos em Angola e também os que, radicados, manifestassem esse desejo. Estariam portanto, definidas as regras do jogo e pouco interessaria fazer considerandos sobre outro tipo de soluções possíveis, diversos caminhos porque se poderia ter adoptado. Contrariamente ao que muitos quiseram fazer crer, diferentemente do que até alguns ainda recentemente dirigentes agitaram como receio terrível, não se assistiu em Angola a reaccionarismos exacerbados, a manifestações exaltadas de racismo ou violêncoa. Impreparada como estava, emocionada como lógicamente estaria, até inquieta, como seria razoável admitir que estivessem, a gente branca de Angola, na sua esmagadora maioria, aplaudiu o governo de transição e, em não pucos casos, deu até um suspiro de alívio. Na altura e tal como sempre, bem lhes importava a eles quem estivesse no governo desde que mandasse. E, de preferência que mandasse bem....
Partidos políticos iam ser três, possíveis de escolher. Tantos quantos os Movimentos de Libertação considerados legítimos representantes do povo angolano. Fosse o que fosse que se tivesse passado, fossem quais fossem as suas ideias (ou falta delas) antes do 25 de Abril, e a situção era esta. Para os "brancos", claro, era coisa nova. Na luta por uma Angola maior eles limitaram-se a conduzir camiões e trectores, erguer hortas e fezendas, traficar alguma coisa, construir prédios, burocratizar até ao infinito,projectar estradas e comunicações, martelar, pregar, pintar, que sei eu? Não pegaram em armas, está visto, para lutar pela independência de Angola, não ficaram em prisões por esse desejo, não fizeram parte de délulas clandestinas nem sequer sabotaram o esforço de guerra. Muitos terão até servido devotadamente o regime colonial. A partir de Acordo de Alvor a situação mudou, tudo mudou e a questão era clara: nascidos ou radicados poderiam adoptar a nacionalidade angolana. Aconteceu,porém, que a situação não era fácil. Escxolher o pertido que mais se aproximava da maneira de cada um talvez não tivesse sido difícil. O problema estava em saber de que forma entendiam os três partidos - que se consideravam ainda muito como Movimentos de Libertação - essa adesão. Muitos dos seus militantes viam nisto um oportunismo criticável.
"Como assim"? então este agora é da UNITA? da FNLA? do MPLA? este que antes do 25 de Abril fazia isto ou dizia aquilo?...

OS BRANCOS DE ANGOLA AINDA NÃO SE TINHAM ESQUECIDO DAS PALAVRAS DO MINISTRO DOS NEGÓCIO ESTRANGEIROS, MÁRIO SOARES, À REVISTA ALEMÃ "DER SIPEGEL" DE AGOSTO DE 1974.


TRANSCRIÇÃO
DER SPIEGEL Nº 34/1974

Entrevista a Mário Soares, Ministro dos Negócios Estrangeiros

“SE NECESSÁRIO ATIRAR SOBRE OS COLONOS  BRANCOS

O Ministro dos Negócios Estrangeiros português Mário Soares sobre a descolonização em África

SP – Sr. Ministro, o Governo Provisório está em vias de conceder a independência às colónias da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Há portugueses que se interrogam se este Governo de Transição, que não foi eleito pelo povo, mas empossado por um golpe militar, tem legitimidade para tomar uma decisão tão histórica.
MS – Isso nos perguntámos logo a seguir à revolução de 25 de Abril. Ponderamos se a descolonização se deveria fazer apenas após eleições regulares. Mas verificou-se que o problema era candente, que dificuldades e demoras surgiam no processo. E assim convencemo-nos que precisávamos de nos apressar.
SP Há portugueses que julgam que o Sr. se tenha apressado demais – como em tempos os belgas ao se retirarem do Congo.
MS Estamos há 3 meses no governo, e entretanto fizemos contactos e progressos, mas não creio que tenhamos sido demasiado apressados. Pelo contrário. A situação em Angola, que nos últimos tempos se tornou explosiva, prova que talvez não tivéssemos andado suficientemente depressa.
SP – Sobre as condições de independência o Sr. Negoceia exclusivamente com os movimentos de libertação africanos. Na sua opinião eles são os únicos legítimos representantes das populações nas colónias?
MS – Bem, se quisermos fazer a paz – e nós queremos sem demora a paz – temos que falar com os que nos combatem. Isto não implica uma avaliação política ou ética dos movimentos de libertação, mas resulta da apreciação pragmática de determinada situação. E quem nos combate na Guiné? O PAIGC. Assim temos de falar com o PAIGC. Quem nos combate em Moçambique? A Frelimo. Assim temos de falar com a Frelimo.
SP – E com quem pode o Sr. negociar em Angola onde existem vários movimentos rivais?
MS – Em Angola há dois movimentos de libertação reconhecidos pela OUA – o MPLA e a FNLA. Assim temos de negociar com ambos. Para avaliar qual dos dois é o mais representativo do povo é um problema que os Angolanos e as coligações que no futuro formarão governo terão de resolver mais tarde.
SP Acredita que esses movimentos e em particular os ainda discutíveis têm suficiente autoridade de impor a solução que vai ser negociada.
MS Esperamos que sim. Mas o processo de descolonização em Portugal, no formato, não deverá decorrer de modo muito deferente do da Inglaterra e França.
SP – Na Argélia havia um movimento de libertação muito forte, como no Kénia e sem dúvida também na Guiné-Bissau e Moçambique. Mas e em Angola?
MS – Sim, na verdade em Angola a situação é difícil devido às divisões dentro dos movimentos. E nós não podemos alterar aí quase nada. Estamos prontos a falar com cada uma das facções e, dentro das nossas possibilidades, procurar que se unam. Mas não temos muitas ilusões, as nossas possibilidades de intervir aqui são muito limitadas.
SP – Se o processo de descolonização português correr como o inglês ou o francês, na sua opinião qual será a tendência a seguir - como no Kénia que seguiu a via capitalista, ou como a Zâmbia que tenta uma espécie de socialismo africano?
MS – Eu julgo que é sempre perigosa a transposição de modelos estranhos. Mas, de momento, parece-me que a evolução em Moçambique será semelhante à da Zâmbia. Noutras regiões poderá haver outras soluções. Quando falei da semelhança do nosso processo de descolonização com o inglês ou o francês, pensei mais nas linhas gerais – que nós, como potência colonial, como os ingleses e os franceses, devíamos negociar com os movimentos fortes a operar nas colónias.
SP – E o que virá depois das negociações?
MS Parece-nos importante que as populações sejam consultadas e que, depois do domínio português, não lhes seja imposto outro domínio que poderá não ter a maioria. Gostaríamos que a liberdade da população fosse garantida e assegurada. Mas temos nós, como antiga potência colonial, autoridade bastante para discutir isso? A nós parece-nos isso muito problemático. Por outro lado, o PAIGC e a Frelimo são movimentos de libertação que  em anos de luta renhida pela independência ganharam indiscutível autoridade. Eles têm chefes muito qualificados e conscientes das responsabilidades. Com quem mais, a não ser com eles, deveremos negociar?
SP Sente-se o novo governo português também responsável por aqueles milhares de africanos que, por motivos diversos, colaboraram o anterior regime?
MS – Certamente que nos sentimos responsáveis por essa parte da população e sobre o seu destino já se falou por diversas vezes nas conversações. No caso concreto da Guiné, onde o processo está mais avançado, tencionamos, por exemplo, repatriar para Portugal os ex-combatentes africanos que a queiram por não se conseguirem integrar na nova República independente.
SP – Quantas pessoas são essas?
MS Sabemos de cerca de 30 antigos comandos que aos olhos do PAIGC representam um certo perigo. Para estas pessoas temos de encontrar uma solução qualquer – talvez integrá-los nas forças armadas portuguesas ou coisa semelhante.
SP Acredita que do lado dos movimentos de libertação exista a boa vontade de não exercer represálias contra os colaboradores africanos do antigo regime?
MS – Sim, isso foi-me espontaneamente assegurado, mesmo antes de nós termos levantado o problema. Também nos deram certas garantias, os movimentos de libertação não são racistas. Eles estão conscientes dos imensos problemas que terão de enfrentar e não querem comprometer já a sua vida política com crueldades e actos de vingança.
SP – No entanto, a “Voz da Frelimo” emissora do movimento para Moçambique tem, nas passadas semanas, por diversas vezes apelado aos soldados pretos para desertarem das tropas portuguesas, sob pena de ajuste de contas após a independência.
MS – Uma guerra, infelizmente não é um jogo de cavalheiros nem um concurso hípico com regras éticas fixas. Tais excessos verbais e ameaças são lamentáveis, mas também muito naturais. Na verdade, não sei se essas ameaças foram feitas, mas considero-as possíveis. Mas até agora tivemos na Guiné e em Moçambique – em Angola ainda não – uma impressionante onda de confraternização e tudo tem corrido muito melhor do que seria de esperar depois de 13 anos de guerra.
SP – Muitos brancos nas colónias portuguesas sentem-se traídos por Lisboa. Com razão?
MS – Se acreditou nos slogans do antigo regime – que Angola é nossa e sê-lo-á para sempre, e que não são colónias mas simplesmente províncias ultramarinas – então terá razão em sentir-se traído. Mas, na realidade, a traição é do regime de Salazar e Caetano que quiseram fazer esta gente acreditar que seria possível oferecer resistência ao mundo inteiro e à justiça.
SP – Qual será o futuro destes brancos desiludidos, se, apesar de tudo, quiserem permanecer em África?
MS – Se forem leais para com os novos Estados independentes na cooperação e respeitarem as suas leis, não têm nada a temer. Na Guiné, por exemplo, o próprio movimento de libertação exortou-nos a deixar os nossos técnicos, médicos, engenheiros e agrónomos, porque precisavam deles. É cómico: a extrema esquerda portuguesa exigia a nossa saída imediata, total e sem condições, mas os próprios movimentos de libertação não exigiram nada disso.
SP – O que será dos brancos que não querem ficar em África? Em Moçambique já se iniciou entre os brancos um grande movimento de fuga.
MS É verdade. Mas estou certo que dois anos após a independência e quando as instituições do País funcionarem razoavelmente, haverá mais portugueses, em Moçambique, que hoje. Isto é, aliás, um fenómeno geral. O Presidente Kaunda da Zâmbia disse-me, quando estive em Lusaka: “ Saiba que temos aqui na Zâmbia o dobro dos ingleses que tínhamos antes da independência”.
SP – E o Sr. acredita que isso também acontecerá em Moçambique?
MS – Sim. Primeiro virão muitos para Portugal, porque têm medo, mas depois regressarão.
SP – E em Angola?
MS – Ali ainda não há muitos que abandonaram o País. Ali generaliza-se entre os brancos uma atitude perigosa. Precisamos de convencer os brancos, no seu próprio interesse, que fiquem, mas já não como patrões, como até agora.
SP – Apesar disso Portugal tem de contar com o regresso de muitos. Como irão resolver o caso?
MS – Isto é para nós um problema económico muito sério, pois não é apenas o regresso dos colonos brancos mas também os soldados – cerca de 150.000 a 200.000 homens que regressam duma assentada. Acrescem ainda os imigrantes que querem regressar desde que Portugal é livre. O assunto está a ser estudado pelo Ministério da Economia e Finanças. Temos de criar novos postos de trabalho, mas isso significa igualmente a reestruturação da totalidade da economia portuguesa, que vai precisar de se adaptar às sociedades industriais modernas.
SP – Não existem portanto planos concretos para absorver os retornados?
MS Há investigações adiantadas.
SP – Entre os brancos que não querem regressar a Portugal, tenta-se criar um exército de mercenários para se opor aos movimentos de libertação. Em Angola, nos últimos tempos, radicais brancos de direita provocaram confrontos raciais sangrentos. Pode Lisboa impedir que tais brancos, especialmente em Angola, tomem o poder?
MS – Eu penso que sim.
SP – Como?
MS – O exército em Moçambique e em Angola é completamente leal para com os que fizeram a Revolução de 25 de Abril. E o exército não permitirá que mercenários brancos ou grupos semelhantes se levantem contra o exército. Tentativas haverá. Em Moçambique já as houve.
SP – E em Angola onde vivem mais do dobro dos brancos e um terço menos de pretos que em Moçambique?
MS – Em Angola haverá certamente uma série de situações mais ou menos desesperadas e tensões perigosas entre as raças. Apesar disso, julgo que por ora o exército pode e fará manter a ordem – a ordem democrática.
SP – Portanto, se necessário, o exército português fará fogo sobre portugueses brancos?
MS – Ele não hesitará e não pode hesitar. O exército já mostrou que tem mão forte e quer manter a ordem a todo o custo.
SP – Apesar do exército, não se pode excluir a hipótese de os brancos se declararem independentes, como na Rodésia. Pelo menos Angola podia tentar mesmo economicamente uma tal solução.
MS – De princípio, nos primeiros momentos da Revolução tive muito receio que tal pudesse acontecer. Mas quanto mais o tempo passa, mais difícil se tornará uma tal tentativa.
SP – Suponhamos, no entanto, que tal venha a acontecer – reagiria Lisboa como Londres, na altura, tentando impor um bloqueio económico?
MS – Não creio que em Angola exista uma solução rodesiana, mas se tal acontecesse combatê-la-íamos com todas as nossas forças, pois uma tal solução seria para África e para o Mundo uma aventura inaceitável.
SP – Também se pensou isso no caso da Rodésia e, no entanto, não se pôde evitar.
MS – Para nós tal solução é improvável a não ser que tivéssemos um golpe de direita aqui em Portugal. Nós – este governo democrático – não permitirá que tal solução rodesiana aconteça em Angola ou Moçambique. Eu repito! Nós combatê-la-emos com todos os meios ao nosso dispor.
SP -  Porquê?
MS – Porque isso poria em causa todo o nosso processo de descolonização, a nossa credibilidade, e a nossa boa vontade. E porque com uma tal solução até o regresso do fascismo poderia ser encaminhado em Portugal.
SP – Do ponto de vista económico a perda da Guiné e de Moçambique são um alívio para Portugal. Angola, no entanto, com os seus diamantes, petróleo, café trouxe para Portugal as tão necessárias divisas. Pode Portugal dar-se ao luxo de perder essa fonte de divisas?
MS – Todas estas receitas não compensavam os custos de guerra. Nós gastávamos cerca de 2 biliões de marcos por ano com a guerra. O que pouparmos com o fim da guerra compensa plenamente a perda dessas divisas, que de qualquer modo, acabavam na maior parte nos bolsos dos americanos, alemães e ingleses.
SP – Lisboa irá ajudar no futuro as suas antigas colónias? Concretamente:  -Se Moçambique independente resolvesse impedir o trânsito de mercadorias da Rodésia para Lourenço Marques ou Beira para exercer pressão política sobre o regime branco de Salisbury, estaria Portugal disposto a compensar Moçambique pela perda de divisas que tal operação acarretaria?
MS – Os nossos meios são escassos, temos de ter em atenção a nossa muito tensa situação económica. Mas, dentro das nossas possibilidades, ajudaríamos, numa tal situação.
SP – No seu livro “Portugal e o Futuro”, o general Spínola propunha uma espécie de comunidade portuguesa como forma de cooperação futura entre Lisboa e África. Os movimentos de libertação não deram qualquer importância à ideia. Como serão as futuras relações entre Lisboa e África?
MS – O discurso pragmático proferido pelo general Spínola em 27 de Julho sobre o futuro das colónias está muito distante da concepção do seu livro. Se, algum dia, uma espécie de comunidade dos países lusófonos se verificar, só na condição de todos os países serem realmente independentes. E seriam então os países africanos a dizer até que ponto tal associação poderia ir.
SP – Sr. Ministro, muito obrigado pela entrevista.


Em Luanda já só existia o MPLA, a UNITA e a FNLA jé tinham saído. Os patrulhamentos eram feitos conjuntamente por elementos do exército português e pelos das FAPLA.

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